A SUPREMA
BEM-AVENTURANÇA
Mateus 5:3
Antes de entrar no estudo
detalhado de cada bem-aventurança se impõem duas observações de ordem geral.
(1) Pode perceber-se que todas as
bem-aventuranças possuem a mesma forma. No original em grego não aparece o elo que
une, em português, as duas partes de cada bem-aventurança. Por que é assim?
Jesus não pronunciou as
bem-aventuranças em grego mas em aramaico, que era a classe de hebreu que os
judeus falavam naquela época. Em aramaico e hebreu há uma expressão muito corrente,
que é uma espécie de interjeição e que significa: "Que feliz é...!"
Esta expressão (em hebreu clássico asheré)
é muito comum no Antigo Testamento. Por exemplo, o
Salmo 1 começa com essa
expressão, e quer dizer literalmente: "Que feliz o homem que não andou
acompanhado nem obedeceu o conselho dos maus!" (Salmo 1:1). Esta é a mesma
forma que Jesus utiliza nas
"bem-aventuranças". As
bem-aventuranças não são simples afirmações, são exclamações enfáticas:
"Que feliz é o pobre de espírito...!"
Isto é muito importante, porque
significa que as bem-aventuranças não são piedosas exclamações de esperança no
que poderia chegar a ser; não são profecias brilhantes com um halo de glória
futura em algum céu distante; são exclamações de alegria por algo que já é, que
já existe. São felicitações. A bem-aventurança que recebe o cristão não é uma
bem-aventurança posposta para um estado futuro de glória celestial, a não ser algo
que já existe aqui e agora. Não é algo que o cristão receberá, mas algo que já
recebeu. Certamente obterá a plenitude de cada dom quando puder gozá-lo na
presença plena de Deus, mas enquanto isso cada dom é algo que já, aqui e agora,
pode-se desfrutar.
As bem-aventuranças, com efeito,
dizem: "Que felicidade é ser cristão! Que alegria seguir a Cristo! Que
alegria conhecer a Jesus como
Mestre, Salvador e Senhor!"
A forma mesmo das
bem-aventuranças nos indicam que são exclamações de gozosa surpresa e radiante
felicidade pela realidade da vida cristã. Em face das bem-aventuranças se faz impossível
toda interpretação do cristianismo como uma religião triste e carente de
entusiasmo contente.
(2) A palavra
"bem-aventurados", que se usa em cada uma das bem aventuranças, merece
uma atenção muito especial. Em grego é a palavra
makários, que em geral
se usa para descrever aos deuses. Na fé cristã há um prazer e alegria que são
divinos. O significado de makários
poderá entender-se melhor a partir de um de seus usos comuns na literatura daquela
época. Os gregos sempre chamaram a ilha de Chipre "jê makária" (a ilha feliz) porque acreditavam
que era uma terra tão bela, tão rica, tão fértil que ninguém precisava transpor
suas linhas costeiras para viver uma vida feliz, posto que nela havia todo o
necessário para uma existência perfeita. Tinha tal clima, tais flores, frutos e
árvores, tais minerais, tais recursos naturais, que continha em si tudo o que
era necessário para uma felicidade perfeita. Makários então descreve uma
alegria autossuficiente, que possui em si mesmo o segredo de sua própria
irradiação, essa alegria sereno, intocável e autônomo que não é afetado pelas
diferentes circunstâncias da vida. A felicidade humana depende das ocasiões e
circunstâncias cambiantes da existência, algo que a vida pode dar ou pode
tirar. A bem-aventurança cristã está livre de qualquer risco ou ardil. Nada
pode tocá-la ou atacá-la. "Ninguém vos tirará vossa alegria", disse
Jesus (João 16:22). As bem-aventuranças nos falam dessa alegria que sai a nosso
encontro até no meio da dor, aquela alegria que não podem manchar nem o
sofrimento, nem a tristeza, nem o desamparo, nem a perda de algo ou alguém que
queremos muito. É a alegria que brilha através das lágrimas e que nada, nem na
vida nem na morte, pode arrebatar.
O mundo pode ganhar e, da mesma
maneira, perder suas alegrias.
Uma mudança na fortuna, um
colapso da saúde, a desilusão que nos ocasionam as ambições que não podemos
cumprir, até o mau tempo pode nos privar dessa migalha de alegria que o mundo
pode dar. Mas o cristão possui essa alegria sereno e intocável que provém de
andar sempre na companhia de Jesus e estar sempre em sua presença.
O maior das bem-aventuranças é
que não são visões esperançadas de alguma realidade futura; nem são promessas
douradas de glórias distantes; são exclamações triunfais ante a realidade da
alegria permanente que nada no mundo pode tirar.
A
BEM-AVENTURANÇA DOS DESTITUÍDOS
Mateus 5:3
(continuação)
Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus;
Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus;
É surpreendente que se comece a
falar da felicidade dizendo:
"Bem aventurados os pobres de espírito."
Há duas formas de entender o significado
da palavra "pobres".
Tal como nós ás temos, as
bem-aventuranças estão, originalmente, no idioma grego, e a palavra que se
utiliza para dizer "pobres" é ptojói.
Em grego há duas palavras que
designam a pobreza. Uma delas é penés.
Penem é o homem que
tem que trabalhar para ganhá-la vida, aquele que se serve a si mesmo atendendo
suas necessidades com suas próprias mãos (autodiákonos).
Penés é o homem de
trabalho, o operário, que não tem nada que o sobre, o homem que não é rico mas
que tampouco sofre miséria. Mas, como já o vimos, na bem-aventurança não se usa
a palavra penem, a não ser ptojós, que descreve a pobreza absoluta e
total de que está fundo na miséria. Está relacionada com a raiz ptoséin que
significa agachar-se ou encolher o corpo; descreve, portanto, a pobreza do que
não pode levar a frente em alto e pede, ajoelhado, encolhido, que lhe ofereça uma
esmola para aliviar sua situação. Como dissemos, penés descreve ao homem
que não tem nada supérfluo; ptojós, em troca, descreve o homem que não
tem nada. Tudo isto faz que a bem-aventurança seja até maisdifícil de entender.
O homem que não tem nada, diz-nos, que sofre a mais abjeta miséria, é um
bem-aventurado. Bem-aventurado o homem que está na pobreza mais absoluta. Tal
como o vimos anteriormente, as bem-aventuranças, entretanto, não foram
pronunciadas originalmente em grego, a não ser em aramaico.
Os judeus usavam a palavra
"pobre" com um sentido muito especial. Em hebreu as palavras que
significam pobre são 'ani e ebion. Estas duas palavras sofreram,
na evolução do idioma hebreu, uma quádrupla mutação de significado.
(1) A princípio significavam
simplesmente pobre, e portanto, sem poder, ou prestígio, e influência.
(2) Portanto, porque se sofria de pobreza, carecia-se
de influência, poder. ou prestígio.
(3) Em terceiro lugar
significaram carecer de poder, ou influência, e portanto, oprimido, explorado
ou avassalado pelos capitalistas.
(4) Por último deveram significar ao homem
que, por não possuir nenhum recurso terrestre, coloca toda sua esperança e
confiança em Deus. De maneira que em hebreu a palavra "pobre"
designava ao homem humilde que põe toda sua confiança em Deus. É com este
sentido que o salmista usa a palavra quando escreve:
"Este pobre clamou, e lhe
ouviu Jeová, e o livrou de todas suas angústias" (Salmo 34:6).
Nos Salmos o que é pobre neste
sentido recebe a misericórdia e o amor de Deus, "Pois o necessitado não
será para sempre esquecido, e a esperança dos aflitos não se há de frustrar
perpetuamente" (Salmo 9:18). Deus liberta os pobres (Salmo 35:10).
"Em tua bondade, ó Deus,
fizeste provisão para os necessitados" (Salmo 68:10).
"Salvará os filhos do
necessitado, e esmagará ao opressor". (Salmo 72:4).
"Levanta da miséria ao
pobre, e faz multiplicar as famílias como rebanhos de ovelhas" (Salmo
107:41).
"A seus pobres saciarei de
pão" (Salmo 132:15).
Em todos estes casos o pobre é o homem humilde
e impossibilitado, que colocou sua esperança e confiança em Deus.
Reunamos agora os dois aspectos
deste termo; o grego, por um lado, e o aramaico, pelo outro. Ptojós descreve
ao destituído total, ao homem que não possui nada; 'ani e ebion descrevem
ao pobre, ao humilde, ao impotente, que colocou sua esperança em Deus.
Portanto,"Bem-aventurados os
pobres" significa:
"Bendito e feliz é o homem que tomou
consciência de sua
total
necessidade, e que colocou sua confiança em Deus."
Se alguém se fizer consciente de
sua total destituição e põe toda sua confiança em Deus entram em sua vida dois
elementos que são as caras opostas de uma mesma realidade. Em primeiro lugar,
muitas coisas lhe serão indiferentes, porque saberá que não pode receber
felicidade nem segurança das coisas; por outro lado, em segundo lugar, sentirá
que Deus, no fundo, é verdadeiramente a única coisa que lhe importa. Porque saberá
que Deus é o único que pode lhe oferecer ajuda, esperança e fortaleza. O
"pobre em espírito" é o homem que se deu conta que as coisas não significam nada, e que Deus o
significa tudo.
Não devemos pensar que esta
bem-aventurança é um elogio da pobreza material. A pobreza não é boa. Jesus
nunca teria qualificado de
"bem-aventurada" a
condição de quem vive em vilas miseráveis ou tugúrios e não têm o suficiente
para comer e são acossados constantemente pelas enfermidades, porque tudo está
contra eles. O evangelho cristão tem como um de seus objetivos a eliminação
desta classe de pobreza. A pobreza bem-aventurada é a do "pobre em
espírito", a do espírito que reconhece sua própria falta de recursos para
fazer frente às exigências da vida e encontra a ajuda e a fortaleza que
necessita em
Deus.
Jesus diz que a estes pobres
pertence o Reino dos céus. Por que tem que ser deste modo? Se tomarmos duas das
petições do Pai Nosso e as lermos juntas, "Venha seu Reino, seja feita a
tua vontade assim na terra como no céu", obtemos a seguinte definição:
"O Reino dos céus é uma sociedade na qual a vontade de Deus se faz na
Terra do mesmo modo que no céu". Isto significa que somente aquele que faz
a vontade de Deus na Terra é cidadão do Reino dos céus; e somente podemos fazer
a vontade de Deus quando nos damos conta de nossa própria total impotência, de
nossa própria total ignorância e de nossa própria total incapacidade para responder satisfatoriamente
às exigências da vida, e quando, portanto, pomos toda nossa confiança em Deus.
A obediência sempre se baseia na confiança. O Reino de Deus é a posse
inalienável dos pobres em espírito, porque os pobres em espírito hão, tomado
consciência de sua destituição total e aprenderam a confiar e obedecer.
De maneira que a primeira
bem-aventurança significa:
“Quão feliz é o homem que se deu conta de sua
total destituição e pôs toda sua confiança em Deus, porque somente deste modo
pode oferecer a Deus essa perfeita que o converterá em cidadão do Reino dos
céus!”.
Fonte: Comentário Bíblico do N.T.de, Willin Barclay
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