A
BEM-AVENTURANÇA DO ESPÍRITO FAMINTO
Mateus 5:6
As palavras não existem no vazio.
Possuem uma história inscrita nas experiências e no pensamento de quem as usa.
O significado de cada palavra está condicionado pela experiência da pessoa que
a usa. Esta afirmação geral se cumpre, de maneira particular, no caso desta
bem-aventurança. Alguém que a escutasse pela primeira vez receberia uma impressão
muito distinta da que produz em nós.
A verdade é que muito poucos,
entre nós, dadas as condições modernas de vida, sabem o que significa ter fome
ou sede. No mundo antigo era muito diferente. O salário de um operário, naquela
época, era o equivalente a 8 centavos de dólar, e ainda considerando o maior
valor aquisitivo do dinheiro naquela época, não havia muito que se pudesse fazer
com essa soma. Na Palestina se comia carne somente uma vez por semana, e o
operário estava permanentemente por um fio bordo da inanição ou seja da
verdadeira fome, que pode chegar a ocasionar a morte. Muito mais grave era o
problema da bebida. Na antiguidade a maioria das pessoas não dispunha de água
corrente em suas casas. Quem saía de viagem podia a qualquer momento ser
surpreendido por uma tormenta de ar quente. Não havia nada que pudesse fazer,
exceto envolver a cabeça em seu turbante, dar as costas ao vento e esperar que passasse
a tormenta, enquanto a areia entrava pelo nariz e a boca ao ponto em que só
podia respirar e crescia nele uma imperiosa sede que não podia satisfazer. Nas
condições da vida moderna, no mundo ocidental, não há paralelos que possam
servir como comparação de situações como estas.
De modo que a fome desta
bem-aventurança não é um "apetite" que pode satisfazer-se comendo um
bocado na metade da manhã; e a sede não é a que se sacia com uma bebida
refrigerante. É a fome do homem que durante toda sua vida não comeu o
suficiente para satisfazer-se e além disso, possivelmente, há vários dias que
não tem nada para comer, é a sede do homem que morrerá a menos que encontre
água para beber.
Sendo assim, esta bem-aventurança
é em realidade uma pergunta e um desafio. Em efeito, o que pergunta é: Até que
ponto você deseja a justiça? Você a quer na medida em que o faminto deseja algo
para comer, ou o sedento algo para beber? Em outras palavras, qual é a intensidade
verdadeira do desejo de justiça que nos anima?
Há muitos que experimentam um
desejo instintivo de justiça, mas é um desejo nebuloso e generalizado antes que
agudo e concreto. Quando chega o momento de tomar uma decisão não estão
preparados para o esforço. Não estão dispostos a fazer o sacrifício que a
justiça demanda.
Há muitos que sofrem do que
Robert Louis Stevenson chamava "a enfermidade de não querer". É
evidente que o mundo mudaria radicalmente se quiséssemos a justiça mais que
nenhuma outra coisa.
Quando enfocamos esta
bem-aventurança deste ponto de vista, é verdadeiramente a mais exigente e
terrível de todas as bem-aventuranças.
Mas não somente é a
bem-aventurança que mais exige do homem, mas também a que mais consolo lhe
oferece. Seu pano de fundo é que o homem que recebe a bem-aventurança não é o
que obtém a justiça e a bondade mas sim o que as deseja de todo o seu coração.
Se a bênção de Deus descansasse somente sobre o que é justo ou bondoso, ninguém
seria digno de bem-aventurança alguma. Mas a bem-aventurança é recebida pelo
homem que, apesar de seus fracassos e limitações, segue desejando
apaixonadamente a perfeição espiritual e moral. H. G. Wells observava em certa
oportunidade que "pode-se ser mau músico, mas estar apaixonadamente
apaixonado pela música".
Robert Louis Stevenson falou dos
que "mesmo tendo se afundado muito profundamente no pecado, aferram-se à
pouca justiça que resta, como sua posse mais apreciada, no prostíbulo, no
patíbulo".
Sir Norman Birkett, o famoso
advogado e juiz no campo criminal, falava de sentenciados que tinha conhecido
em sua experiência profissional, e dizia que sempre fica em qualquer homem, por
mais que tenha caído, uma inextinguível fome de algo, e se referia à bondade como
esse "caçador que nunca se cansa de nos perseguir". Até o pior dos homens
"está condenado a alguma forma de nobreza".
A verdadeira maravilha em relação
aos seres humanos não é que sejam pecadores mas sim, até sendo-o, sempre
desejam, em maior ou menor grau, a justiça, e que mesmo estando inundados no
barro não perdem a visão das estrelas. Davi sempre quis construir o Templo de
Deus, mas nunca conseguiu
fazê-lo; foi-lhe proibido e negado que cumprisse sua ambição maior. Mas Deus
lhe disse: "Já que desejaste edificar uma casa ao meu nome, bem fizeste em
o resolver em teu coração" (1 Reis 8:18).
Em sua misericórdia Deus não nos julga
somente por nossos logros mas também por nossos sonhos. Até se alguém não obtém
totalmente a justiça que deseja, até se quando está a ponto de pôr-se o sol de
sua vida ainda, continua experimentando fome e sede dessa justiça, não fica excluído
da bem-aventurança.
Há outro aspecto desta
bem-aventurança, que somente podem percebê-lo os que têm acesso ao texto em
grego. Uma das regras do idioma grego é que os verbos como "ter fome"
ou "ter sede" sempre estão seguidos de um substantivo em caso
genitivo. O caso genitivo é a forma gramatical que em português se constrói com
a preposição de. A palavra "homem" em caso genitivo é "do
homem". O genitivo que vem depois de verbos como os que se citaram se
denomina em grego "genitivo partitivo", ou seja o genitivo das
partes. Se dissermos, por exemplo, "tenho fome de pão", não se trata
de todo o pão, mas sim do pão necessário para acalmar a fome e possivelmente um
pouco mais. Se disser "Tenho sede de água", não é toda a água que há
no rio, ou no poço, mas sim de um pouco de água. Mas nesta bem-aventurança a palavra
"justiça" não está, como corresponde, em caso genitivo (partitivo)
mas em acusativo, algo muito pouco comum em grego.
Quando verbos como "ter
fome" ou "ter sede" vão seguidos de um acusativo, o significado
da oração é que se tem fome ou sede da totalidade do objeto ou objeto direto do
verbo. Dizer "Tenho fome de pão" com "pão" em acusativo,
significa "Quero comer todo o pão". Dizer "Tenho sede de
água" com "água" em acusativo, significa "Quero tomar toda
a água que há na jarra". Portanto a tradução correta desta parte da bem-aventurança
seria:
Bem-aventurados os que têm fome e sede
de toda a justiça, da justiça total, da justiça absoluta. Isto é algo que
em geral muito poucos experimentam.
Contentam-se em ter alcançado
um pouco de justiça. Alguém pode ser um homem bom no sentido que por mais que alguém o
proponha e procure nele, não pode atribuir-lhe mal algum. Sua honestidade,
sua moralidade, sua
respeitabilidade
estão além de qualquer questionamento; mas, ao mesmo tempo, ninguém
pode ir a esse homem com tristeza e chorar sobre seu peito, porque
imediatamente se retrairia. Pode haver justiça acompanhada de dureza, de um espírito de
censura, de falta de simpatia.
Esta justiça não é autêntica
bondade moral, é uma justiça parcial. Por outro lado, possivelmente haja outro
homem, suscetível a muitas formas de pecado; possivelmente beba, diga más
palavras, jogue por dinheiro e perca as estribeiras co muita frequência; e
entretanto quando alguém junto a ele passa por um momento difícil, é capaz de
lhe dar até o último centavo que tem em seu bolso, e de tirar o casaco para
abrigá-lo. Mas esta também é uma justiça parcial. O que esta bem-aventurança
afirma é que não basta satisfazer-se com uma justiça parcial. É bem-aventurado aquele
que tem fome e sede de uma justiça total. Não basta a conduta moral impecável
sem compaixão, nem a mais apaixonada solidariedade humana sem uma vida reta.
De maneira que a tradução da
quarta bem-aventurança, seria como segue:
Quão feliz é o homem que deseja a justiça
total do mesmo modo como o que tem fome deseja o alimento, ou o que morre de
sede deseja a bebida, porque este receberá a satisfação de seu desejo!
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