A EXPIAÇÃO
Podemos definir a expiação como segue: expiação é a obra que Cristo realizou em sua vida e morte para obter nossa salvação. Essa definição indica que usamos a palavra expiação num sentido mais amplo em que às vezes é utilizada. Ela é empregada de vez em quando para se referir apenas ao fato de Jesus morrer e pagar nossos pecados na cruz.
A. A CAUSA DA EXPIAÇÃO
Qual foi a causa última que levou Cristo a vir para este mundo e morrer pelos nossos pecados? Para encontrá-la, devemos pesquisar o assunto em alguma coisa no caráter do próprio Deus. E aqui as Escrituras apontam para duas coisas: o amor e a justiça de Deus.
O amor de Deus como uma das causas da expiação é descrito na passagem mais conhecida da Bíblia: “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). Mas a justiça de Deus também exigia que ele encontrasse um meio pelo qual a pena pelos nossos pecados fosse paga (pois ele não podia aceitar-nos em comunhão consigo mesmo a menos que a penalidade fosse paga).
B. A NECESSIDADE DE EXPIAÇÃO
Havia alguma outra maneira de Deus salvar os seres humanos além de enviar seu Filho para morrer em nosso lugar?
Antes de responder a essa pergunta, é importante entender que Deus não tinha nenhuma necessidade de salvar ninguém. Quando nos conscientizamos de que “Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo” (2Pe 2.4), percebemos que Deus poderia também ter escolhido com perfeita justiça deixar-nos em nossos pecados, esperando o julgamento; ele poderia ter escolhido não salvar ninguém, assim como fez com os anjos pecaminosos. Assim, nesse sentido a expiação não era absolutamente necessária.
Mas uma vez que Deus, em seu amor, decidiu salvar alguns seres humanos, então a várias passagens nas escrituras indicam que não havia outra maneira de Deus fazê-lo a não ser pela morte de seu filho. Portanto a expiação não era absolutamente necessária, mas, como "consequência" da decisão divina de salvar alguns seres humanos, a expiação era absolutamente necessária. Essa concepção às vezes é chamada visão da "absoluta necessidade consequente" de expiação. No jardim do Getsêmani, Jesus ora: "...se possível, passa de mim esse cálice! Todavia não se seja como eu qyero mas como tu queres Mt.26.39 e (cf. Lc. 24.25-26, Rm.3.26.; Hb.2.17; Hb10.4; e Hb.9.25-26)
C. A NATUREZA DA EXPIAÇÃO
Nesta seção, considero dois aspectos da obra de Cristo:
(1) a obediência de Cristo por nós, pela qual obedeceu às exigências da lei em nosso lugar e foi perfeitamente obediente à vontade de Deus Pai como nosso representante, e
(2) os sofrimentos de Cristo por nós, pelos quais recebeu o castigo pelos nossos pecados e, em conseqüência, morreu pelos nossos pecados.
1. A obediência de Cristo por nós (às vezes chamada “obediência ativa”).
Se Cristo tivesse conseguido só o perdão dos pecados por nós, não mereceríamos o céu. Nossa culpa teria sido removida, mas estaríamos simplesmente na posição de Adão e Eva antes de terem feito qualquer coisa boa ou má e antes de terem passado um tempo de provação com sucesso. Para serem estabelecidos em justiça para sempre e ter assegurada a sua eterna comunhão com Deus, Adão e Eva tinham de obedecer a Deus de modo perfeito por um período de tempo. Então, Deus teria olhado para sua obediência fiel com prazer e deleite, e eles teriam vivido em comunhão com o Senhor para sempre.
2. Os sofrimentos de Cristo por nós (às vezes chamados “obediência passiva”).
Além de obedecer à lei de modo perfeito por toda a sua vida em nosso favor, Cristo tomou também sobre si mesmo os sofrimentos necessários para pagar a penalidade pelos nossos pecados.
a. Sofrimento por toda a sua vida. Num sentido mais amplo a pena que Cristo suportou ao pagar nossos pecados foi um sofrimento tanto em seu corpo como em sua alma ao longo da vida. Embora os sofrimentos de Cristo tenham culminado em sua morte sobre a cruz (veja abaixo), toda a sua vida num mundo caído envolveu sofrimento. Por exemplo, Jesus suportou tremendo sofrimento durante a tentação no deserto (Mt 4.1-11), quando foi submetido por quarenta dias aos ataques de Satanás.5
b. A dor da cruz. Os sofrimentos de Jesus se intensificaram à medida que ele se aproximava da cruz. Ele compartilhou com os discípulos algo da agonia que estava vivendo quando disse: “A minha alma está profundamente triste até à morte” (Mt 26.38). Foi especialmente sobre a cruz que os sofrimentos de Jesus por nós atingiram seu clímax, pois foi ali que ele suportou o castigo pelo nosso pecado e morreu em nosso lugar. As Escrituras nos ensinam que havia quatro diferentes aspectos da dor que Jesus experimentou:
(1) Dor física e morte
Não precisamos sustentar que Jesus sofreu mais dor física do que qualquer ser humano jamais sofreu, pois em nenhuma passagem a Bíblia faz tal alegação. Mas ainda não podemos esquecer que a morte por crucificação era uma das formas mais horríveis de execução que o homem já inventou..
(2) A dor de carregar o pecado
Mais horrível que a dor do sofrimento físico que Jesus suportou foi a dor psicológica de carregar a culpa pelo nosso pecado. Em nossa própria experiência como cristãos conhecemos um pouco da angústia que sentimos quando sabemos que pecamos. O peso da culpa nos oprime o coração, e há um amargo sentimento de separação de tudo que é correto no universo, uma consciência de algo que num sentido bem profundo não devia existir. Na verdade, quanto mais crescemos em santidade como filhos de Deus, sentimos de modo mais intenso essa repugnância instintiva diante do mal.
(3) Abandono
A dor física da crucificação e a dor de carregar sobre si mesmo o mal absoluto de nossos pecados foram agravadas pelo fato de Jesus ter enfrentado essa dor sozinho. No Getsêmani, quando Jesus levou consigo Pedro, Tiago e João, confidenciou-lhes um pouco de sua agonia: “A minha alma está profundamente triste até à morte; ficai aqui e vigiai” (Mc 14.34). Esse é o tipo de confidência que se faz a um amigo íntimo e implica um pedido de apoio em sua hora da maior provação. Porém, quando Jesus foi preso, “os discípulos todos, deixando-o, fugiram” (Mt 26.56).
(4) A dor de suportar a ira de Deus
Mais difícil ainda que esses três aspectos da dor de Jesus foi a dor de suportar sobre si a ira de Deus. Como Jesus carregava sozinho a culpa de nossos pecados, Deus Pai, o poderoso Criador, o Senhor do universo, derramou sobre ele a fúria de sua ira: Jesus se tornou objeto do intenso ódio e da vingança contra o pecado que Deus tinha guardado com paciência desde o início do mundo.
c. Outras reflexões sobre a morte de Cristo
(1) O castigo foi infligido por Deus Pai
Se perguntarmos “Quem exigiu que Cristo pagasse a pena pelos nossos pecados?”, a resposta dada pelas Escrituras é que o castigo foi aplicado por Deus Pai como representante dos interesses da Trindade na redenção. Foi a justiça de Deus que exigiu que o pecado fosse pago, e, entre os membros da Trindade, era Deus Pai quem tinha o papel de exigir esse pagamento. Deus Filho voluntariamente assumiu o papel de suportar o castigo pelo pecado.
(2) Não um sofrimento eterno, mas um pagamento integral
Se tivéssemos de pagar a pena de nossos próprios pecados, teríamos de sofrer eternamente separados de Deus. Porém, Jesus não sofreu eternamente. Existem duas razões para essa diferença:
(a) Se sofrêssemos pelos nossos próprios pecados, nunca seríamos capazes de nos colocar novamente em condição correta com Deus por nós mesmos. Não haveria nenhuma esperança, pois não poderíamos viver de novo e conseguir justiça perfeita diante de Deus, e não haveria nenhum modo de desfazer nossa natureza pecaminosa e torná-la justa diante de Deus.
(b) Jesus era capaz de receber toda a ira de Deus contra nosso pecado e sofrê-la até o fim. Nenhum homem comum poderia jamais fazer isso, mas em virtude da união das naturezas divina e humana em sua pessoa, Jesus era capaz de receber toda a ira de Deus contra o pecado e sofrê-la até o fim. Isaías predisse que Deus “verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito” (Is 53.11).
(3) O significado do sangue de Cristo
O Novo Testamento muitas vezes liga o sangue de Cristo com nossa redenção. Por exemplo, Pedro diz: “... sabendo que não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo” (1Pe 1.18-19).
(4) A morte de Cristo como “substituição penal”
A concepção da morte de Cristo apresentada aqui tem sido chamada com freqüência a teoria da “substituição penal”. A morte de Cristo foi “penal” pelo fato de ter ele cumprido uma pena quando morreu. Sua morte foi também uma “substituição” pelo fato de ter ele sido nosso substituto quando morreu.
d. Termos do Novo Testamento que descrevem diferentes aspectos da expiação. A obra expiatória de Cristo é um evento complexo que tem vários efeitos sobre nós. O Novo Testamento usa diferentes palavras para descrevê-los; vamos examinar quatro termos mais importantes. Eles mostram como a morte de Cristo atendeu a quatro necessidades que temos como pecadores:
(1) Sacrifício
Para pagar a pena de morte que merecemos por causa de nossos pecados, Cristo morreu como sacrifício por nós. Ele “se manifestou uma vez por todas, para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o pecado” (Hb 9.26).
(2) Propiciação
Para nos livrar da ira de Deus que merecemos, Cristo morreu como propiciação pelos nossos pecados. “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4.10).
(3) Reconciliação
Para vencer a nossa separação de Deus, precisávamos de alguém que proporcionasse reconciliação e dessa forma nos trouxesse de volta à comunhão com Deus. Paulo diz que Deus “nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação” (2Co 5.18-19).
(4) Redenção
Uma vez que como pecadores estamos escravizados ao pecado e a Satanás, precisamos de alguém que nos proporcione redenção e, dessa forma, nos “redima” de nossa servidão. Quando falamos em redenção, entra em foco a idéia de “resgate”. Resgate é o preço pago para redimir alguém da escravidão ou cativeiro. Jesus disse de si mesmo: “Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45).
e. Outras concepções da expiação. Em contraste com a concepção da substituição penal da expiação apresentada neste capítulo, vários outros pontos de vista têm sido defendidos na história da igreja.
(1) A teoria do resgate pago a Satanás
Essa visão foi sustentada por Orígenes (c. 185 – c. 254 d.C.), teólogo de Alexandria e mais tarde de Cesaréia, e depois dele por alguns outros na história antiga da igreja. De acordo com esse ponto de vista, o resgate que Cristo pagou para nos redimir foi dado a Satanás, em cujo reino se encontravam todas as pessoas devido ao pecado.
(2) A teoria da influência moral
Defendida pela primeira vez por Pedro Abelardo (1079-1142), teólogo francês, a teoria da influência moral da expiação sustenta que Deus não exige o pagamento de um castigo pelo pecado, mas que a morte de Cristo era simplesmente um modo pelo qual Deus mostrou o quanto amava os seres humanos ao identificar-se, até a morte, com os sofrimentos deles. A morte de Cristo, portanto, torna-se um grande exemplo didático que mostra o amor de Deus por nós, amor que nos extrai uma resposta agradecida, de modo que somos perdoados ao amá-lo.
(3) A teoria do exemplo
A teoria do exemplo da expiação foi ensinada pelos socinianos, seguidores de Fausto Socino (1539-1604), teólogo italiano que se estabeleceu na Polônia em 1578 e atraiu grande número de adeptos. A teoria do exemplo, à semelhança da teoria da influência moral, também nega que a justiça de Deus exija castigo pelo pecado; diz que a morte de Cristo simplesmente nos provê de exemplo de como devemos confiar em Deus e obedecer-lhe de modo perfeito, mesmo que essa confiança e obediência nos levem a uma morte horrível.
(4) A teoria governamental
A teoria governamental da expiação foi ensinada pela primeira vez por um teólogo e jurista holandês, Hugo Grotius (1583-1645). Essa teoria sustenta que Deus não tinha realmente de exigir castigo pelo pecado, mas, uma vez que ele era Deus onipotente, poderia deixar de lado essa exigência e simplesmente perdoar os pecados sem o pagamento de uma pena. Nesse caso, qual foi o propósito da morte de Cristo? Foi a demonstração divina do fato de que suas leis foram infringidas, que ele é o legislador moral e governador do universo e que alguma espécie de pena seria exigida sempre que suas leis fossem infringidas. Dessa forma, Cristo não paga a pena exatamente pelos pecados concretos de alguém, mas apenas sofreu para mostrar que quando as leis de Deus são quebradas alguma espécie de pena deve ser paga.
De novo, o problema com essa visão é que ela falha em explicar de modo adequado todas as passagens bíblicas que falam em Cristo carregando nossos pecados sobre a cruz, em Deus lançando sobre Cristo a iniqüidade de nós todos, em Cristo morrendo especificamente pelos nossos pecados e em Cristo sendo a propiciação pelos nossos pecados. Além disso, ela retira o caráter objetivo da expiação por tornar o seu propósito não a satisfação da justiça de Deus, mas apenas a influência sobre nós a fim de nos fazer perceber que Deus tem leis que devem ser guardadas. Essa concepção implica também que não podemos confiar de modo correto na obra completa de Cristo quanto ao perdão dos pecados, pois de fato não foram pagos por ele. Além do mais, ela faz com que a conquista efetiva do perdão por nós seja algo que aconteceu na mente do próprio Deus à parte da morte de Cristo sobre a cruz — ele já tinha decidido nos perdoar sem exigir de nós nenhum castigo e então puniu Cristo apenas para demonstrar que ainda era o governador moral do universo. Mas isso significa que Cristo (segundo esse ponto de vista) não conquistou de fato o perdão por nós, e assim o valor de sua obra redentora é reduzido de maneira drástica. Por fim, essa teoria não explica de maneira adequada a imutabilidade de Deus e a infinita pureza de sua justiça. Dizer que Deus pode perdoar pecados sem exigir nenhum castigo (a despeito do fato de que através das Escrituras o pecado sempre requer o cumprimento de uma pena) é subestimar seriamente o caráter absoluto da justiça de Deus.
Teologia Sistemática. Wayne Grudem, Edições Vida Nova.
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