A divindade de Cristo
Para completar o ensino
bíblico acerca de Jesus Cristo, precisamos declarar não só que ele era
plenamente humano, mas também plenamente divino. Embora a palavra não ocorra de
maneira explícita na Bíblia, a igreja tem empregado o termo encarnação para referir-se ao fato de
que Jesus era Deus em carne humana. A encarnação
foi o ato pelo qual Deus Filho assumiu a natureza humana. A comprovação bíblica
da divindade de Cristo é bem ampla no Novo Testamento. Vamos examiná-la sob
várias categorias.
1.
Alegações bíblicas diretas.
Nesta seção, examinamos
declarações diretas da Bíblia de que Jesus é Deus ou de que é divino.
a. A palavra Deus (theos) atribuída a Cristo.
Apesar de a palavra theos, “Deus”,
ser em geral reservada no Novo Testamento para Deus Pai, há algumas passagens
em que é também empregada em referência a Jesus Cristo. Em todos esses trechos,
a palavra “Deus” é empregada com um sentido denso em referência àquele que é
Criador do céu e da terra, o governante de tudo.
b. A palavra Senhor (kyrios) atribuída a Cristo.
Às vezes a palavra Senhor (gr. kyrios) é empregada simplesmente como
tratamento respeitoso dispensado a um superior (veja Mt 13.27; 21.30; 27.63; Jo
4.11). Às vezes pode simplesmente significar “patrão” de um servo ou escravo
(Mt 6.24; 21.40). Ainda assim, a mesma palavra é também empregada na
Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento, de uso comum na época de
Cristo) como uma tradução do hebraico yhwh,
“Javé”, ou (conforme traduzido com freqüência) “o Senhor” ou “Jeová”.
c. Outras fortes
alegações de divindade. Além dos usos da palavra Deus e Senhor em
referência a Cristo, temos outras passagens que defendem com vigor a divindade
de Cristo. Quando Jesus disse a seus opositores judeus que Abraão vira seu dia
(o dia de Cristo), eles o contestaram: “Ainda não tens cinqüenta anos e viste
Abraão?” (Jo 8.57). Aqui uma resposta suficiente para provar a eternidade de
Jesus teria sido: “Antes que Abraão fosse, eu era”. Mas não foi isso que Jesus
disse. Antes, ele fez uma declaração muito mais estarrecedora: “Em verdade, em
verdade eu vos digo: antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8.58).
2. Sinais
de que Jesus possuía atributos de divindade.
Além das afirmações
específicas da divindade de Jesus vistas nas muitas passagens citadas acima,
vemos muitos exemplos de atos na vida de Jesus que indicam seu caráter divino.
Jesus demonstrou sua onipotência quando acalmou a tempestade no mar com uma palavra (Mt
8.26-27), multiplicou os pães e peixes (Mt 14.19) e transformou a água em vinho
(Jo 2.1-11). Alguns podem objetar, dizendo que esses milagres só mostraram o
poder do Espírito Santo agindo por intermédio dele, assim como o Espírito Santo
poderia agir por meio de qualquer outro ser humano e, assim, isso não comprova
a divindade de Jesus.
3. Teria
Jesus desistido de algum atributo enquanto estava na terra (a teoria da
kenosis)?
Paulo escreve aos
filipenses:
Tende em vós o mesmo sentimento que
houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não
julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou,
assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido
em figura humana... (Fp 2.5-7).
Partindo desse texto,
alguns teólogos da Alemanha (a partir de 1860-1880) e da Inglaterra (a partir
de 1890-1910) passaram a defender uma idéia de encarnação que jamais fora
defendida na história da igreja. Essa nova idéia foi chamada “teoria da
kenosis”, e a posição geral representada por ela foi chamada “teologia
kenótica”.
4. Conclusão:
Cristo é plenamente
divino. O Novo Testamento, em centenas de versículos explícitos que chamam
Jesus de “Deus” e “Senhor” e empregam alguns outros títulos de divindade em
referência a ele, e em muitas passagens que lhe atribuem ações ou palavras aplicáveis
somente ao próprio Deus, declara repetidas vezes a divindade plena e absoluta
de Jesus Cristo. “Aprouve a Deus que, nele, residisse toda a plenitude” (Cl 1.19) e “nele, habita, corporalmente, toda a
plenitude da Divindade” (Cl 2.9).
5. Seria a
doutrina da encarnação “compreensível” hoje?
Ao longo de toda a
história levantam-se objeções ao ensino neotestamentário da plena divindade de
Cristo. Um ataque recente a essa doutrina merece menção aqui por ter criado
grande controvérsia, pois os que contribuíram para o texto eram todos líderes
eclesiásticos de renome na Inglaterra. O livro era chamado The Mith of God Incarnate [o mito do Deus encarnado], editado por
John Hick (London: SCM, 1977). O título apresenta a tese do livro: a idéia de
que Jesus era “Deus encarnado” ou “Deus vindo em carne” é um “mito” — uma
história que talvez se adequasse à fé das gerações anteriores, mas que não
merece crédito hoje.
6. Por que é necessária a divindade de Jesus?
Na seção anterior
alistamos alguns motivos pelos quais era necessário que Jesus fosse plenamente
humano para obter nossa redenção. Aqui cabe reconhecer que é também
crucialmente importante insistir na plena divindade de Cristo, não só porque
ela é ensinada de maneira clara nas Escrituras, mas também porque
(1)
só alguém que
fosse Deus infinito poderia arcar com toda a pena de todos os pecados de todos
os que cressem nele — qualquer criatura finita não seria capaz de arcar com tal
pena;
(2)
a salvação vem
do Senhor (Jn 2.9 arc), e toda a
mensagem das Escrituras é moldada para mostrar que nenhum ser humano, nenhuma
criatura, jamais conseguiria salvar o homem — só Deus mesmo poderia; e
(3)
só alguém que
fosse verdadeira e plenamente Deus poderia ser o mediador entre Deus e homem
(1Tm 2.5), tanto para nos levar de volta a Deus como também para revelar Deus
de maneira mais completa a nós (Jo 14.9).
Assim, se Jesus não é
plenamente Deus, não temos salvação e, por fim, nenhum cristianismo. Não é por
acaso que ao longo da história os grupos que abandonaram a crença na plena divindade
de Cristo não têm permanecido muito tempo na fé cristã, desviando-se logo para
um tipo de religião representada pelo unitarismo nos Estados Unidos e em outros
lugares. “Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo e nela não permanece
não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem tanto o Pai como o Filho”
(2Jo 9).
C.A encarnação: divindade e humanidade na única pessoa de Cristo
O ensino bíblico sobre
a plena divindade e plena humanidade de Cristo é tão amplo que se vem crendo em
ambos desde os primeiros tempos da história da igreja. Mas um entendimento
preciso de como a plena divindade e a plena humanidade poderiam ser combinadas
em uma pessoa só foi formulado gradualmente na igreja e não chegou à forma
final antes da Definição de Calcedônia em 451 d.C.
1. Três concepções inadequadas da pessoa de
Cristo
a. O apolinarismo.
Apolinário, que se tornou bispo em Laodicéia em cerca de 361 a.C., ensinava que
a pessoa única de Cristo possuía um corpo humano, mas não uma mente ou um
espírito humano, e que a mente e o espírito de Cristo provinham da natureza
divina do Filho de Deus.
b. O nestorianismo.
O nestorianismo é a doutrina de que havia duas pessoas distintas em Cristo, uma
pessoa humana e outra divina, ensino diferente da idéia bíblica que vê Jesus
como uma só pessoa.
c. O monofisismo
(eutiquianismo). Uma terceira concepção inadequada é chamada monofisismo, a idéia de que Cristo
possuía só uma natureza (gr. monos,
“um”, e physis, “natureza”). O
primeiro defensor dessa idéia na igreja primitiva foi Êutico (c. 378-454 d.C.),
líder de um mosteiro em Constantinopla. Êutico ensinava o erro oposto do
nestorianismo, pois negava que as naturezas humana e divina em Cristo
permanecessem plenamente humana e plenamente divina.
2. A
solução da controvérsia:
A definição de Calcedônia em 451
d.C. Para tentar resolver os problemas
levantados pelas controvérsias em torno da pessoa de Cristo, convocou-se um
amplo concílio eclesiástico na cidade de Calcedônia, perto de Constantinopla
(atual Istambul), realizado de 8 de outubro a 1.o de novembro de 451. A declaração resultante,
chamada Definição de Calcedônia, previne contra o apolinarismo, o nestorianismo
e o eutiquianismo. Ela tem sido tomada desde então como a definição padrão,
ortodoxa, do ensino bíblico sobre a pessoa de Cristo igualmente pelos ramos
católicos, protestantes e ortodoxos do cristianismo.
3.
Agrupamento de textos bíblicos específicos sobre a divindade e a humanidade de
Cristo.
Quando examinamos o
Novo Testamento, conforme fizemos acima nas seções sobre a humanidade e a
divindade de Jesus, há algumas passagens que parecem difíceis de encaixar.
(Como Jesus podia ser onipotente e ainda assim fraco? Como podia deixar o mundo
e ainda estar presente em todos os lugares? Como podia aprender coisas e ainda
ser onisciente?)
a. Uma natureza faz
algumas coisas que a outra não faz. Teólogos evangélicos de gerações
anteriores não hesitaram em fazer distinção entre coisas feitas pela natureza
humana de Cristo, mas não pela natureza divina, ou pela natureza divina, mas
não pela humana. Parece que temos de fazer isso se quisermos reafirmar a
declaração de Calcedônia de que “é
preservada a propriedade de cada natureza”. Mas poucos teólogos recentes
dispõem-se a fazer tal distinção, talvez por causa de uma hesitação em afirmar
algo que não conseguimos compreender.
b. Tudo o que uma
das naturezas faz, a pessoa de Cristo faz. Na seção anterior mencionamos
uma série de coisas feitas por uma natureza, mas não pela outra na pessoa de
Cristo. Agora precisamos afirmar que tudo o que diz respeito à natureza humana
ou divina de Cristo diz respeito à pessoa de Cristo. Assim Jesus pode dizer:
“antes que Abraão existisse, eu sou”
(Jo 8.58). Ele não diz: “Antes que Abraão existisse, minha natureza humana
existia”, porque ele é livre para falar de qualquer coisa feita só por sua
natureza divina ou só por sua natureza humana como algo feito por ele.
c. Títulos que nos
lembram de uma natureza podem ser empregados em referência à pessoa, mesmo
quando a ação é realizada pela outra natureza. Os autores do Novo
Testamento às vezes empregam títulos que nos lembram ou da natureza humana ou
da natureza divina para falar da pessoa de Cristo, ainda que a ação mencionada
possa ter sido realizada apenas pela outra natureza e não pela que pareça estar
implicada no título. Por exemplo, Paulo diz que se os governantes deste mundo
tivessem compreendido a sabedoria de Deus, “jamais teriam crucificado o Senhor da glória” (1Co 2.8).
d. Uma breve frase
de resumo. Às vezes no estudo da teologia sistemática, a seguinte frase tem
sido empregada para resumir a encarnação: “Permanecendo o que era, tornou-se o
que não era”. Em outras palavras, enquanto Jesus “permanecia” o que era (ou
seja, plenamente divino), ele também se tornou o que não fora antes (ou seja,
também plenamente humano). Jesus não deixou nada de sua divindade quando se
tornou homem, mas assumiu a humanidade que antes não lhe pertencia.
e. A “comunicação”
de atributos. Depois de decidirmos que Jesus era plenamente homem e
plenamente Deus, e que sua natureza humana permaneceu plenamente humana e sua natureza divina permaneceu plenamente divina, podemos ainda
perguntar se algumas qualidades ou capacidades foram dadas (ou “comunicadas”)
de uma natureza a outra. Parece que a resposta é sim.
(1) Da natureza divina para a natureza humana
Ainda que a natureza
humana de Jesus não tenha mudado em seu caráter essencial, porque ela foi unida
à natureza divina na pessoa única de Cristo, a natureza humana de Jesus obteve:
(a) dignidade para ser cultuada e
(b) incapacidade de pecar, elementos que não
pertencem, de outra maneira, aos seres humanos.
(2) Da natureza humana para a natureza divina
A natureza humana de
Jesus lhe deu:
(a) a capacidade de experimentar o sofrimento e a morte;
(b) a
capacidade de ser nosso sacrifício substitutivo, o que Jesus, só como Deus, não
poderia ter feito.
f. Conclusão. Ao final desta longa discussão, pode-nos ser fácil perder de vista o que de fato é ensinado nas Escrituras. Trata-se, de longe, do milagre mais maravilhoso de toda a Bíblia — muito mais maravilhoso que a ressurreição e até que a criação do universo. O fato de o Filho de Deus, infinito, onipresente e eterno tornar-se homem e unir-se para sempre a uma natureza humana, de modo que o Deus infinito se tornasse uma só pessoa com o homem finito, permanecerá pela eternidade como o mais profundo milagre e o mais profundo mistério em todo o universo.
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