DEVERES,
FINALIDADES E PERIGOS Hebreus 12:12-17
Com esta passagem o autor chega
aos problemas diários da vida cristã. Sabia que algumas vezes o homem pode
alçar vôo como águia e correr sem cansaço seguindo o ímpeto do esforço; mas
sabia também que o mais difícil é caminhar diariamente sem desfalecer. Nesta
passagem pensa no viver diário e na luta da vida cristã.
(1) Começa lembrando os cristãos
de seus deveres. Em toda congregação e em toda sociedade cristã há
membros fracos e propensos a extraviar-se e a deixar-se arrastar e abandonar a
luta. É dever dos mais fortes injetar vida e vigor nos que estão a ponto de
claudicar na batalha.
Devem inspirar fortaleza em suas mãos
abatidas e nova força em seus pés desfalecentes. A frase que se usa para mãos
descaídas é a mesma que se aplica aos filhos de Israel quando desejavam
abandonar os rigores da viagem através do deserto e retornar ao bem-estar e às
panelas de carne do Egito. As Odes de Salomão 6:14 ss têm uma descrição
dos que são servos e ministros fiéis: "Eles suavizaram os lábios secos, à vontade que
desfalecia infundiram vigor... e aos membros prostrados endireitaram e ergueram."
Uma das maiores glórias da vida é
saber dar ânimo ao homem que está à beira do desespero e fortaleza ao que
desfalece. Para ajudá-lo nisto devemos endireitar seu caminho. O cristão tem o
duplo dever para com Deus e para com seu próximo.
O Testemunho de Simeão 5:2-3
tem uma luminosa descrição do dever de um homem bom: "Que seu coração seja
bom à vista do Senhor; que seu caminho seja reto à vista dos homens; desta
maneira encontrará favor diante Deus e dos homens". O homem deve
apresentar a Deus um coração limpo e aos
homens uma vida íntegra. O cristão tem o dever de mostrar ao homem o caminho
reto por aquele que tem que caminhar, de encaminhá-lo pelo bom exemplo pessoal,
de remover do atalho da vida o que o faria tropeçar e de tornar a viagem mais
fácil a seus pés vacilantes e atrasados. O homem deve oferecer seu coração a
Deus e seu serviço e seu exemplo ao próximo.
(2) Em segundo lugar, o autor
refere-se às finalidades que o cristão sempre deve ter perante si.
(a) Deve ter em vista a paz.
No pensamento e na linguagem hebraicas a paz não era algo negativo, mas algo
positivo por excelência; não era simplesmente estar livres de dificuldades.
Abrangia duas coisas.
Em primeiro lugar,
era tudo aquilo que tinha que ver com o bem supremo do homem; e significava o
maior bem-estar que alguém podia desfrutar. Era aquilo que fazia com que o
homem alcançasse seu topo mais alto. Segundo os judeus, esse bem-estar supremo
e esse sumo bem encontravam se na obediência a Deus O autor de Provérbios (3:1)
diz: “Filho meu, não te esqueças dos meus ensinos, e o teu coração guarde os
meus mandamentos; porque eles aumentarão os teus dias e te acrescentarão anos
de vida e paz.”. O cristão deve ter em vista essa obediência total a
Deus em que a vida encontra sua maior felicidade, seu maior bem, sua perfeita
consumação, sua paz.
Em segundo lugar, paz significa relações
justas entre os homens; um estado em que se proscreve o ódio e em que cada um
não busca senão o bem de seu próximo; significa o vínculo de amor, perdão e
serviço que devesse unir aos homens entre si. O autor de Hebreus diz:
"Busquem viver unidos assim como os cristãos devem viver: na unidade real
que provém da vida em Cristo". A paz que se tem que buscar é a que provém da
obediência à vontade de Deus, a que eleva a vida do homem a sua realização mais
alta e a que o capacita para viver com seu próximo e estabelecer uma relação
justa com ele.
Deve-se notar uma coisa mais:
esta classe de paz tem que ser nossa finalidade; tem que ser perseguida.
Esta paz requer um esforço; é o produto do esforço, a disciplina e o empenho e
o suor mental e espiritual.
Os dons de Deus são dados, mas
não dados de presente; devem ser ganhos, pois só podem-se receber
aceitando as condições que Deus põe — e a condição suprema é a obediência a
ele.
(b) Deve apontar à santidade (hagiasmos).
Hagiasmos tem a mesma raiz que o adjetivo hagios ordinariamente
traduzido por santo. A raiz da palavra índica sempre diferença e separação.
Ainda que viva no mundo, o homem hagios deve ser sempre, em certo
sentido, diferente do mundo e estar separado dele. Suas normas e sua conduta
não são as do mundo.
Seu ideal é diferente; sua
recompensa é diferente; sua finalidade é diferente. Sua finalidade não é estar
bem com os homens mas com Deus.
Hagiasmos (santidade)
como o expressa finalmente Westcott, é: "a preparação para a presença de
Deus". A vida do cristão está dominada e dirigida pela lembrança constante
de que seu maior propósito é entrar na presença de Deus.
(3) O autor passa agora a
assinalar os perigos que ameaçam a vida cristã.
(a) Existe o perigo de perder
a graça de Deus, ou como se traduz na Nova Versão Internacional: excluir-se
da graça de Deus. O antigo comentarista grego Teofilacto, interpreta isto
em termos de uma viagem de um grupo de pessoas. De vez em quando devem fazer
chamada e perguntar: '"Alguém caiu? Alguém se demorou à beira do caminho?
Alguém atrasou enquanto outros se
adiantaram?".
Em Miquéias 4:6 (Reina-Valera
Revisada 1995) há um texto gráfico: "Reunirei as extraviadas". É
fácil desencaminhar-se, atrasar-se, ir à deriva em vez de adiantar-se, e perder
assim a graça de Deus. Não há nesta vida oportunidade que não possa ser
desperdiçada. A graça de
Deus nos traz a oportunidade de
fazer de nós mesmos e de nossas vidas o que têm que ser. Um homem, em sua
letargia, sua negligência, sua inconsciência
e demora pode perder as oportunidades que a graça lhe oferece. Contra isto
devemos estar sempre alerta.
(b) Devemos estar alerta ao que o
texto chama “alguma raiz de amargura”. A frase provém de Deuteronômio 29:18,
onde descreve ao que vai atrás de deuses estranhos, anima a outros a operar
desta maneira e se transforma assim num fator pernicioso e mortífero na vida da
comunidade. O autor adverte contra aqueles que têm uma influência corruptora.
Sempre há aqueles que pensam que as normas cristãs são desnecessariamente
estritas e meticulosas; os que nunca vêem por que não devam envolver-se nas
coisas que o mundo chama êxito e prazer; os que estariam bem contentamentos
adotando as normas do mundo para a vida e a conduta. Isto era particularmente
assim na Igreja primitiva. A Igreja era uma pequena ilha de cristianismo
rodeada por um mar de paganismo; seus membros estavam apartados no máximo por
uma geração. Era fatalmente fácil recair nas antigas normas. Trata-se de uma advertência
contra qualquer influência que pudesse fazer com que o cristão pensasse mais no
mundo e menos em Deus. É uma admoestação contra o contágio do mundo, algumas
vezes deliberado, outras inconsciente, difundido na sociedade cristã.
(c) O cristão tem que estar
alerta contra toda queda na imoralidade ou recaída numa vida ímpia. Ímpio
em grego é bebelos que tem todo um fundo luminoso. usava-se
para a terra profana em contraposição à consagrada. O mundo
antigo tinha suas religiões nas quais só o iniciado podia participar. Bebelos
se usava para a pessoa não iniciada e desinteressada em
contraposição ao homem devoto. Aplicava-se a homens tais como
Antíoco Epifânio, que estavam empenhados em eliminar toda religião
verdadeira e aos judeus renegados e apóstatas e que tinham abandonado a
Deus.
Westcott resume o alcance desta
palavra dizendo que descreve o homem cuja mente não reconhece nada superior ao
mundo; para quem não existe nada sagrado; que não guarda nenhum respeito para
com o invisível. Uma vida ímpia é uma vida sem nenhuma consciência de
Deus ou interesse nEle; que em seus
pensamentos, suas intenções, seus prazeres e suas normas está completamente
atada à terra. Devemos tomar cuidado de não ser arrastados a uma estrutura
mental e emotiva que não tem nenhum horizonte para além deste mundo; este
caminho leva inevitavelmente ao fracasso da castidade e na perda da honra.
Para resumir tudo o autor de
Hebreus cita o exemplo do Esaú. Em realidade junta duas histórias: a de Gênesis
25:28-34 e a de Gênesis 27:1-39. Na primeira Esaú vem do campo com um homem
voraz, para vender seu direito de primogenitura a Jacó e participar assim na
comida que este preparava. A segunda narra como Jacó despojou sutilmente a
Esaú de seu direito de
primogenitura personificando-o perante Isaque velho e cego, e ganhando assim a
bênção e o direito de primogenitura que pertenciam a Esaú como o maior dos
dois. Quando Esaú buscou a bênção que Jacó tinha obtido astutamente, levantou
sua voz e chorou (Gênesis 27:38). Mas há algo mais que salta à primeira vista.
Nas lendas hebraicas e nas elaborações rabínicas, Esaú chegou a ser considerado
como o tipo do homem inteiramente sensual, que em primeiro lugar tem em conta
as necessidades de seu corpo, que dá preeminência aos prazeres imediatos e às
paixões, que vende o direito de primogenitura para encher o estômago.
A lenda hebraica diz que antes de
nascerem Jacó e Esaú (eram gêmeos) e enquanto ainda estavam no seio de sua mãe,
Jacó disse a Esaú: "Irmão meu, há dois mundos diante de nós: este mundo e
aquele que há que vir. Neste mundo os homens comem, bebem, negociam, casam-se e
engendram filhos e filhas; mas tudo isto não tem lugar no mundo futuro. Se
quiser, escolhe este mundo que eu escolherei o outro".
E Esaú ficou muito contente de
poder escolher este mundo, porque não cria no outro. No mesmo dia em que Jacó
ganhou por seu subterfúgio a bênção de Isaque, Esaú segundo a lenda, já tinha
cometido cinco pecados: "tinha rendido um culto estranho, tinha derramado
sangue inocente, tinha açoitado a uma jovem comprometida, tinha negado a vida do
mundo vindouro, e tinha desprezado seu direito de primogenitura".
A interpretação hebréia
considerava o Esaú como o homem do corpo, o homem sensual, o homem que não
encontra prazeres mais além dos deste mundo. Todo homem deste tipo vende seu
direito de primogenitura e esbanja seu patrimônio desprezando a eternidade.
O autor de nossa Carta diz que
Esaú não teve oportunidade para o arrependimento. Usa-se a palavra metanoia
que literalmente significa mudança de mente. É melhor dizer que a
Esaú foi impossível a mudança de mente. Não é que se achasse proscrito
para sempre do perdão de
Deus; é algo muito mais simples.
É o triste fato de que há certas opções que não podem desfazer-se e certas
conseqüências que nem sequer Deus pode evitar. Para aduzir um exemplo simples:
se um jovem perder sua pureza ou uma jovem sua virgindade, não há nada que
possa restituir o estado anterior. A escolha foi feita e subsiste. Deus pode e
quer perdoar, mas Deus mesmo não pode fazer com que o relógio do tempo volte
atrás para suprimir a escolha e eliminar as consequências. Lembremos que a vida
tem certa finalidade. Se como Esaú seguimos o caminho do mundo, nosso bem
último serão as coisas sensuais e corporais; se escolhemos os prazeres do tempo,
preferindo-os às alegrias da eternidade, Deus pode e quer ainda perdoar, mas
sucedeu algo que não pode ser desfeito. Há certas coisas nas quais o homem não
pode mudar de mente; seu desejo de mudança sobreveio muito tarde; deve
permanecer para sempre na escolha que fez.
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