Aqui temos, pois, o
oferecimento supremo de Deus, mas é um
oferecimento que só
se faz à confiança perfeita e à obediência plena; um
oferecimento que deve
ser aceito agora, antes que seja impossível aceitá-lo.
O
REPOUSO QUE NÃO DEVEMOS ARRISCAR
Hebreus
4:1-10
Numa passagem
complicada como esta é melhor captar primeiro as
grandes linhas do
pensamento e da argumentação, antes de entrar nos
detalhes.
O autor de Hebreus usa aqui
a palavra repouso (katapausis)
em
três diferentes sentidos.
(1) Usa-a como usaria a frase a
paz de Deus. O maior e mais
apreciado bem deste
mundo é entrar nessa paz divina.
(2) Como já vimos em 3:12, usa-a com o significado da terra
prometida.
Para os filhos de Israel que tinham vagado tanto tempo pelo
deserto a terra
prometida era de fato o descanso de Deus.
(3) Usa-a com referência ao descanso
de Deus depois do sexto dia
da criação, quando
terminou toda sua obra. Esta forma de utilizar uma
palavra em um, dois
ou três sentidos, de insistir na mesma até extrair sua
última gota de
significado, caracterizava os ambientes de pensamento
culto e acadêmico da
época em que foi escrita a carta.
Sigamos agora passo a passo
a argumentação.
(1) Ainda permanece firme a promessa do repouso e da paz de Deus
em favor de seu povo.
A promessa não mudou; o perigo está em que a
percamos e não
consigamos alcançá-la.
(2) Antigamente os israelitas não tinham conseguido entrar no
repouso de Deus. Aqui
a palavra repouso usa-se
no sentido de descanso,
paz e possessão da terra
prometida depois dos anos de perambular pelo
deserto. Evidentemente é uma
referência a Números 14:12-23. Ali se
narra como os filhos de Israel
chegaram aos limites da terra prometida e
enviaram exploradores para
inspecionar o país. Dez destes retornaram
com a conclusão de que
efetivamente tratava-se de uma terra boa, mas
com dificuldades insuperáveis
para a ocupação. Só Calebe e Josué
estavam decididos a prosseguir a
marcha na força do Senhor. O povo
prestou ouvidos os covardes e por
isso — por essa covardia e
desconfiança — foi condenado a
vagar pelo deserto até o fim de seus
dias. Aquelas pessoas não
entraram no repouso que teriam podido
desfrutar, porque não tiveram fé
em Deus, num Deus que teria
enfrentado com eles todas as
dificuldades. Não tinham confiança nem fé
em Deus, e portanto nunca
desfrutaram de do repouso que tivessem
podido ter.
(3) Agora o autor
de Hebreus permuta o significado da palavra
repouso. É certo que
antigamente o povo tinha perdido o repouso que
teria podido obter, mas apesar de
tudo o repouso permanecia.
Atrás
deste argumento jaz uma das
concepções rabínicas favoritas. No sétimo
dia depois de terminar a obra da
criação, Deus tinha descansado de seus
trabalhos. Agora, no relato da
criação de Gênesis 1 e 2 há um fato
extraordinário e curioso. Nos
primeiros seis dias da criação fala-se do
sobrevir da manhã e da tarde; em
outras palavras, cada dia tinha seu
começo e seu fim. Mas no sétimo
dia — o dia do descanso de Deus —
não
se menciona absolutamente o
sobrevir da tarde.
A partir daqui os
rabinos argumentavam que enquanto
os outros dias concluíam, o dia do
descanso de Deus não tinha fim:
era eterno e perdurável. O descanso de
Deus não tem entardecer mas sim
perdura para sempre. Portanto, ainda
que na antigüidade os israelitas
não tivessem podido entrar nesse
repouso, este ainda permanecia,
já que era um repouso eterno.
(4) Novamente o
autor volta ao significado anterior de repouso
como a terra prometida. Depois de
quarenta anos de peregrinação pelo
deserto chegou finalmente o dia
em que o povo pôde entrar na terra
prometida sob a direção de Josué.
Agora, esta era a terra do repouso
e
portanto podia-se argumentar que
então se cumpriu a promessa e que o
povo tinha entrado em seu
repouso. Sob Josué se tomou possessão da
terra prometida. Não se cumpriu
assim a promessa?
(5) De maneira
nenhuma. No Salmo 95:7 Davi ouve a voz de Deus
dizendo a seu povo para que se
não endurecerem seus corações entrarão
em seu repouso. Quer dizer, que séculos depois que Josué tinha
conduzido o povo ao repouso da terra
prometida, Deus ainda os
convida
a entrar em seu repouso. Este repouso consiste
em algo mais que na
mera entrada na terra prometida.
(6) E agora vem a
chamada final. Deus ainda chama os homens,
dizendo-lhes que não endureçam
seus corações, mas que entrem em sua
paz e seu repouso. O
"hoje" de Deus persiste; a promessa segue ainda
aberta. Mas o "hoje"
não dura eternamente; a vida chega a seu termo; a
promessa pode desperdiçar-se;
portanto "entrem mediante a fé na paz de
Deus e conheçam o mesmo repouso
de Deus".
No primeiro versículo há uma
questão de interpretação muito
interessante. Nossa tradução pode
interpretar-se assim: "Tomem
cuidado, não seja que sua
desobediência e sua falta de fé e de resposta
possa significar que vocês mesmos
excluam-se do repouso e da paz que
Deus lhes oferece. Cuidem de que
por sua desobediência e falta de
confiança não se mostrem indignos
até de entrar no repouso e na paz de
Deus." Esta é uma tradução
perfeitamente possível, e até poderia ser a
correta.
Mas existe ainda uma
possibilidade muito mais interessante. A frase
pode significar: "Tomem
cuidado de não pensar que vocês chegaram
muito tarde para entrar no
repouso de Deus; de não acariciar a ideia de
que vocês chegaram à história
muito tarde para poder desfrutar alguma
vez do repouso e da paz de
Deus." Nesta segunda tradução se encerra
uma advertência.
É muito fácil pensar que a grande época da
religião
pertenceu ao passado; que a
Igreja já passou sua época de ouro. Conta-se
que quando narravam a um menino
algumas das importantes histórias
do Antigo Testamento exclamou
pesarosamente: "Nesse então Deus
era muito mais emocionante."
Há na Igreja uma continuada
tendência de olhar para trás; a pensar
que as grandes manifestações de
Deus pertencem ao passado; a crer —
se tivéssemos a suficiente
honestidade para lhe dizer — que o braço de
Deus se cortou e seu poder
diminuiu; que a época de ouro está no
passado. O autor de Hebreus lança
uma clarinada: Não pensem", diz,
"que chegastes muito tarde à
história, não pensem que os dias da grande
promessa e os grandes êxitos são
do passado. Este é ainda o 'hoje' de
Deus. Há para vós uma felicidade
tão grande como a dos santos, uma
aventura tão grande como a dos
mártires. Deus é tão grande 'hoje' como
foi sempre."
Nesta passagem encontram-se duas grandes
verdades que sempre
têm vigência.
(1) Uma palavra como grande, nobre e digna que
seja, não é de
nenhuma utilidade se não chegar a
integrar-se pela fé na pessoa que a
escuta. Há muitas
maneiras de ouvir neste mundo: ouvir com
indiferença, com desinteresse,
criticamente, incredulamente, cínica e
zombeteiramente. O que interessa
é escutar com esforço, crer e agir. As
promessas de Deus não são apenas
belas peças literárias e declarações
melífluas sem significado; são
promessas pelas quais o homem deve
arriscar sua vida e mediante as
quais deve impulsionar sua ação.
(2)
No
primeiro versículo o autor de Hebreus exorta seus leitores a
que tomem cuidado de não perder a promessa. A palavra
traduzida
temamos corresponde a fobeisthai que
literalmente significa temer.
Este
temor cristão não é aquele que
faz com que alguém evite uma tarefa,
nem aquele que reduz a uma inação
estéril, mas sim aquele que o leva a
investir cada átomo de energia
num grande esforço para não perder a
única coisa que vale a pena.
Fonte: Comentário Bíblico William Barclay
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