O HOMEM RECUPERA
SEU DESTINO PERDIDO (Hebreus 2:5-9)
Este não é, por certo, uma
passagem fácil; mas uma vez que
compreendemos seu significado
adquire uma importância tremenda. O
autor começa com uma citação do
salmo 8:46. Agora, se queremos
entender corretamente esta
passagem devemos ter muito em conta que o
salmo 8 refere-se inteiramente ao homem.
É o salmo que canta a glória
que Deus concedeu ao homem. Não há nele referência alguma ao
Messias ou a Jesus. Refere-se
exclusivamente ao homem. Há neste
salmo uma expressão que dificulta
a tarefa de entendê-lo. É a frase o
filho do homem. Estamos tão
acostumados a aplicá-la a Jesus que temos
propensão a referi-la sempre a
Ele. Mas em hebraico filho
de homem
significa simplesmente homem. Basta que nos remetamos
ao livro do
profeta Ezequiel para fazer esta
comprovação. Repetidamente mais de
oitenta vezes Deus dirige-se a
Ezequiel como filho de homem:
“Filho do
homem, volve o rosto contra
Jerusalém” (Ezequiel 21:2); “Filho do
homem, profetiza e dize...” (Ezequiel
30:2). O significado normal de
filho de homem
em
hebraico não é outro senão de homem.
No salmo aqui
chamado as duas frases paralelas
“Que é o homem, que dele te lembres?”
e “Ou o filho do homem, que o
visites?” são duas maneiras diferentes de
dizer uma mesma coisa.
O salmo é um grande canto lírico
a respeito da glória do homem
segundo o desígnio de Deus. De
fato é uma ampliação da grande
promessa de Deus na criação
quando Deus disse ao homem: “Dominai
sobre os peixes do mar, sobre as
aves dos céus e sobre todo animal que
rasteja pela terra” (Gênesis
1:28). De fato, a glória do homem é ainda
maior que a conhecida expressão:
“Contudo, pouco menor o fizeste do
que os anjos” (Salmo 8:5, RC).
Esta é uma tradução correta da versão
grega dos Salmos mas
que não reproduz fielmente o original hebraico
onde diz-se que o homem foi feito
menor que os Elohim; e Elohim é a
palavra comum hebraica para Deus. O que o salmista
escreveu
efetivamente foi, como na RA,
“por um pouco, menor do que Deus”; ou
na B.J., “pouco menos do que um
deus". Desta maneira o salmo canta a
glória do homem feito algo
inferior ao divino e a quem Deus destinou a
dominar sobre tudo o que há no
mundo.
Mas o autor de Hebreus continua.
De fato a situação com a que nos
enfrentamos é muito diferente. O
homem devia possuir domínio sobre
todas as coisas mas não o tem. É uma criatura
frustrada por suas
circunstâncias, derrotada por
suas tentações, cercada por suas fraquezas.
Aquele que devia ser livre está
aprisionado; aquele que devia ser rei é
escravo. Como disse G. K.
Chesterton: "uma coisa é certa: o
homem não
é
o que deveria ter sido".
Mas então o autor vai ainda mais
além. A esta situação veio Jesus.
Ele sofreu e morreu, e porque
sofreu e morreu entrou na glória. E esse
sofrimento, morte e glória são em
favor do homem, porque Jesus Cristo
morreu
para que
o homem fosse o que devia ser. Morreu
para liberá-lo
de sua frustração, sua
escravidão, seu aprisionamento e sua fraqueza e
para lhe conceder o domínio que
devia possuir. Morreu para recriar o
homem de maneira que chegasse a
ser aquilo para o que originariamente
tinha sido criado.
Desta
maneira nesta passagem encontramos três ideias básicas.
(1) Deus criou o
homem só um pouco inferior a si mesmo para que
tivesse o domínio sobre todas as
coisas.
(2) Pelo pecado o
homem se sumiu na frustração e na derrota em
vez de exercer domínio e
possessão.
(3) Neste estado de
frustração e derrota se introduziu Jesus Cristo
para que por sua vida, morte e
glória o homem pudesse ser aquilo para o
qual foi criado.
Para
expressá-lo de outra maneira, o autor de Hebreus nos mostra
nesta
passagem três coisas.
(1) O ideal do que o homem deveria ser
— semelhante a Deus e
dono do universo.
(2) O estado atual do homem — a
frustração em vez do domínio; o
fracasso em vez da glória. O
homem que foi criado para reinar se
converteu em escravo.
(3) E, por último, como o homem atual pode ser transformado no
homem
ideal.
A mudança foi operado por Cristo. O autor de Hebreus vê
em Jesus Cristo o único que por
seu sofrimento e glória pode fazer com
que o homem seja o que está
destinado a ser, e sem Ele nunca poderia
ser.
O SOFRIMENTO
ESSENCIAL (Hebreus
2:10-18)
Aqui usa-se um dos grandes
títulos de Jesus: o autor (arquegos) da
salvação. O mesmo termo
aplica-se a Jesus Atos 3:15; 5:31; Hebreus
12:2. O significado mais simples
desta palavra é cabeça ou
chefe. Assim
Zeus era a cabeça dos deuses e um general é chefe de seu exército. Pode
significar fundador ou originador.
Neste sentido usa-se acerca do
fundador de uma cidade, de uma
família, de uma escola filosófica.
Também se emprega como fonte ou origem. Um bom governante, neste
caso o arquegos da paz e o mau governante, o arquegos da confusão. Há
uma idéia básica que ressoa em
todas as acepções do vocábulo. Um
arquegos é aquele que
começa algo para que os outros possam ter acesso
a isso. Por exemplo, inicia uma
família para que outros possam nascer
em seu seio; funda uma cidade
para que outros possam habitá-la algum
dia; inaugura uma escola
filosófica para que outros possam segui-lo na
verdade e na paz que descobriu
por si mesmo. O arquegos é
autor de
bênçãos ou de desgraças para
outros; é aquele que abre o rastro para que
outros a sigam.
Alguém empregou a seguinte
analogia: Suponhamos que um barco
se acha encalhado e a única
maneira de resgatá-la à tripulação é que
alguém nade rumo à costa com uma
corda, a fim de que uma vez
assegurada esta, outros possam
segui-lo. Aquele que nadou primeiro
seria o arquegos da salvação dos demais. Esta é a imagem que
Hebreus
nos sugere ao dizer que Jesus é o
arquegos de nossa
salvação. Jesus é o
pioneiro que nos abriu o caminho
para Deus que devemos seguir.
Como pôde Jesus chegar a ser
isto? Nossas versões dizem que Deus
o aperfeiçoou por
aflições. Aperfeiçoar traduz o verbo teleioun, que vem
do adjetivo teleios, que se traduz geralmente por perfeito. Mas
no Novo
Testamento a palavra teleios tem um
significado particular. Nada tem a
ver com a perfeição abstrata,
metafísica ou filosófica. Aplica-se por
exemplo a um animal sem mancha e
adequado para o sacrifício; a um
estudioso que deixa os níveis
elementares e chega à maturidade; a um
animal ou um ser humano
completamente desenvolvido; a um cristão
que já não está nas fronteiras da
Igreja, mas sim recebeu o batismo. O
significado fundamental de teleios no Novo
Testamento indica sempre
que a coisa ou a pessoa que se
descrevem cumprem completamente o
propósito ou o
plano para aquele que foram destinados. No sentido de
novo Testamento uma pessoa é teleios quando cumpre em
forma plena o
propósito que Deus lhe atribuiu e
para o qual veio ao mundo. Portanto o
verbo teleios não significa tanto aperfeiçoar como fazer
inteiramente
adequado
e capaz para a tarefa a que alguém está destinado.
Assim, pois, o que o autor de Hebreus diz é que por meio do sofrimento
Jesus foi capacitado inteiramente
para a tarefa de ser o autor de nossa salvação.
Seus sofrimentos o tornaram capaz
de abrir a outros o caminho da
salvação.
E
por que é isto assim?
(1) Por meio de
seus sofrimentos se identificou
realmente com os
homens. O autor de Hebreus cita
três textos do Antigo Testamento como
profecia dessa identidade com os
homens: Salmo 22:22; Isaías 8:17-18.
Se Jesus tivesse vindo ao mundo
numa forma que excluísse todo
sofrimento teria sido
absolutamente diferente dos homens e, portanto,
nunca poderia ter
sido seu Salvador. Como disse Jeremy Taylor:
"Quando Deus
salvou os homens o fez por meio de um homem." De fato
esta mesma
identificação com os homens é a própria essência da idéia
cristã de Deus. O
básico na idéia grega de Deus era a separação,
enquanto que na
concepção cristã é a identidade.
Por meio de seus
sofrimentos Jesus
Cristo se identificou com os homens.
(2) Mediante essa identidade Jesus Cristo simpatiza com o homem;
literalmente sente com ele. É quase impossível compreender a tristeza e a
dor de outro sem ter
passado por tudo isso. Alguém que não tem rastros
de nervos não pode
conceber a tortura da nervosismo. Um homem que se
encontra em perfeitas
condições físicas não entende a lassidão do que
facilmente se cansa
ou o sofrimento do que nunca está livre de dor.
Freqüentemente
acontece que uma pessoa inteligente e que aprende com
rapidez não é capaz
de entender por que os outros são lerdos e aprendem
com dificuldade. Quem
nunca teve pesares não pode entender a dor de
uma pessoa visitada
pela desgraça. Alguém que nunca amou não pode
entender nem o estalo
de tal nem a dolorosa solidão do coração que ama.
Antes de poder
simpatizar com alguém devemos passar pelas mesmas
coisas pelas quais
passou essa pessoa — e isto é precisamente o que
Jesus fez.
(3) E devido a esta simpatia Jesus pode ajudar efetivamente. Ele
conhece nossas
necessidades; padeceu nossas tristezas; enfrentou nossas
tentações. E por esta
razão sabe com exatidão que ajuda necessitamos
e pode nos dar. A
verdade suprema de Jesus é que devido ao que
suportou na própria
carne pode ajudar aos que passam pelas mesmas
circunstâncias.
Fonte: Comentário Bíblico William Barclay
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