ACIMA DOS ANJOS
Hebreus 1:4-14
Na passagem anterior o autor da
Carta se preocupou de demonstrar a superioridade de Jesus sobre
todos os profetas anteriores. Agora empreende a tarefa de demonstrar
sua superioridade sobre os anjos. O fato de que cria importante fazer
isto, mostra o lugar que a crença nos anjos ocupava no pensamento judeu
da época, crença que na época aumentava. Isso se devia à
impressão que causava nos homens o que se chama a transcendência divina.
Cada vez se sentia com mais intensidade a distância e a diferença entre
Deus e os homens. Sentiam que Deus se afastava cada vez mais,
fazendo-se cada vez mais incognoscível e inacessível. O resultado era que
tinham chegado a pensar nos anjos como intermediários entre Deus e o homem.
Tinham começado a sentir que Deus estava tão afastado que não
podia falar diretamente com o homem e vice-versa; e assim tinham
começado a pensar nos anjos como pontes entre Deus e os homens: por eles
Deus falava e eles eram os que, entre outras coisas, levavam as orações
dos homens à presença de Deus. Há um caso particular que ilustra
muito especialmente este processo. No Antigo Testamento a Lei foi
entregue diretamente por Deus a Moisés; não houve necessidade de
intermediários. Mas na época do Novo Testamento os judeus criam que
Deus tinha entregue a Lei aos anjos e estes por sua vez a Moisés,
porque já não era plausível uma comunicação direta entre Deus e os homens
(Atos 7:53; Gálatas 3:19).
Examinemos algumas das crenças
básicas dos judeus e assim nos daremos conta de como reaparecem
nesta passagem. Deus era concebido rodeado de hostes angélicas
(Isaías 6; 1 Reis 22:19) denominadas às vezes o exército de Deus (Josué
5:14 ss.). Os termos correspondentes a anjos são —
respectivamente em grego e em hebreu — aggeloi e mal'a Kim; em ambos os
idiomas significam tanto mensageiros como anjos. De fato, mensageiro é seu
sentido geral e comum. Os anjos são os instrumentos de Deus para trazer
ao mundo sua palavra e a operação de sua vontade ao universo dos
homens. São intermediários e mediadores entre Deus e os homens. Eram
concebidos como espíritos de uma substância ígnea e etérea, algo
assim como uma luz resplandecente. Tinham sido criados no segundo ou
no quinto dia da criação; não bebiam nem comiam nem engendravam
filhos. Às vezes eram considerados imortais embora podiam ser
aniquilados por Deus, mas, como veremos, havia outra crença sobre sua
existência. Alguns deles, os querubins, os serafins e os ofanins (querubin,
serafin, ofanin — in é a terminação plural hebraica dos nomes)
rodeavam sempre o trono de Deus. Cria-se que desfrutavam de um
conhecimento superior aos homens, acima de tudo com relação ao futuro. Mas
não possuíam esse conhecimento por direito próprio, mas sim
"pelo que tinham ouvido atrás da cortina"; era como se tivessem bisbilhotado nos
propósitos e planos divinos. Eram considerados como o séquito ou a família
de Deus; além disso lhe serviam de conselho ou senado.
Antes de fazer algo Deus os consultava; por exemplo quando disse "Façamos
o homem" (Gênesis 1:26). Às vezes os anjos dissentiam com
Deus e objetavam seus planos.
Opuseram-se particularmente à
criação do homem, e nesse então muitos foram aniquilados. Também se
opuseram à entrega da Lei,, e tinham atacado a Moisés quando subia ao
Sinai. Isto foi porque eram ciumentos e não queriam compartilhar sua
posição ou suas prerrogativas com nenhuma outra criatura.
Havia milhões e milhões de anjos.
Só muito depois os judeus lhes deram nomes. No princípio eram
seres anônimos. Os anjos da presença (os arcanjos) eram sete e tinham
nomes. Entre os mais importantes menciona-se Rafael, Uriel,
Fanuel, Gabriel (aquele que transmitia as mensagens de Deus aos homens) e
Miguel (que regia os destinos de Israel). A função dos anjos era
variada: além de trazer mensagens divinas aos homens para
entregá-las e desaparecer imediatamente (Juízes 13:26) intervinham em nome de
Deus nos acontecimentos da história (2 Reis 19:35-36). Duzentos anjos
controlavam o movimento das estrelas e as mantinham em seus cursos. Um
anjo controlava a interminável sucessão dos anos, dos meses e
dos dias; outro, como príncipe poderoso, controlava o mar. Havia anjos da
geada, do orvalho, da chuva, da neve, do granizo, do trovão e do raio.
Havia anjos guardiães do inferno e torturantes dos condenados. Os
anjos escribas registravam num livro cada palavra proferida pelo
mortal. Havia os destruidores e punidores. Figurava Satanás, o anjo fiscal
que durante 364 dias — à exceção do dia da expiação ou do perdão —
contínua e assiduamente apresentava perante Deus acusações contra os
homens. O anjo da morte cumpria só por ordem de Deus um dever
inexorável para com justos e pecadores. Cada nação tinha à sua frente um
anjo guardião que possuía a prostasia, quer dizer, o lugar de
preeminência. Cada pessoa tinha seu anjo guardião, até os meninos (Mateus
18:10). Abundavam tanto os anjos que os rabinos estavam acostumados a
dizer: "Cada folha de erva tem seu anjo."
Nesta passagem se alude indiretamente
a uma crença particular mantida por um grupo reduzido.
Usualmente se estava de acordo em que os anjos eram imortais; mas
alguns pensavam que viviam só um dia. Em certas escolas rabínicas
ensinava-se que "Deus cada dia cria uma nova companhia de anjos que lhe entoam
uma canção para logo desaparecer". "Os anjos são renovados cada
manhã e logo após adorar a Deus retornam ao rio de fogo de onde
provêm." 4 Esdras 8.21 fala do Deus "perante quem a hoste
celestial permanece aterrorizada e a cuja palavra se transforma em vento e
fogo". Uma homilia rabínica põe na boca de um anjo as seguintes palavras:
"Deus nos transforma cada hora... às vezes em fogo, outras em
vento." Isto é o que o autor de Hebreus quer expressar quando diz que Deus “a
seus anjos faz ventos, e a seus ministros, labareda de fogo”
(1:7).
Com uma angelologia tão
desenvolvida existia o perigo real de que na crença popular se fizesse
intervir os anjos entre Deus e os homens. Nestas circunstâncias era
necessário demonstrar que o Filho era muito superior a eles e que quem
conhecia o Filho não necessitava nenhum anjo mediador. O autor da Carta
obtém seu propósito selecionando uma série de textos para ele
probatórios, nos quais se atribui ao Filho um lugar superior ao que jamais foi
dado a anjo algum. Os textos citados são: Salmo 2:7; 2 Samuel 7:14;
Salmo 97:7; Deuteronômio 32:43; Salmo 104:4; Salmo 45:7-8; Salmo
102:26-27; Salmo 110:1. Alguns dos textos diferem da versão que aparece em
nossas Bíblias porque o autor estava citando da Septuaginta, a versão
grega do Antigo Testamento, que nem sempre concorda com o original
hebraico do qual provêm nossas traduções modernas.
Alguns destes textos probatórios
nos resultam estranhos. Assim, por exemplo, 2 Samuel 7:14
originariamente é uma referência simples e direta a Salomão e nada tem a ver
com o Filho ou o Messias. O Salmo 102:26-27 refere-se a Deus e não
ao Filho. Mas quando os cristãos primitivos encontravam um texto
com a palavra Filho ou Senhor consideravam justificado tirá-lo
de seu contexto para aplicá-lo a Jesus. Apesar do que opinemos deste
método, o certo é que lhes resultava convincente.
A doutrina dos anjos
era uma bela construção mas não carecia de perigos. O autor da
carta quer a todo custo evitar o perigo de colocar uma série de seres
entre o homem e Deus; uma série de seres que não são Jesus e através dos
quais os homens pretendam aproximar-se a Deus. Isto se vê claramente
na crença judia de que os anjos traziam mensagens de Deus aos homens e
levavam a Deus as orações destes. O cristianismo não tem necessidade
de nenhum outro intermediário. Por causa de Jesus e de sua obra o
acesso a Deus é direto.
O autor de Hebreus
compreendeu a grande verdade que enuncia e que nós devemos
lembrar sempre: que não necessitamos de ninguém, nem sequer de algum
ser sobrenatural que nos leve a presença de Deus. Jesus Cristo derrubou
toda barreira e nos abriu o caminho direto a Deus.
Fonte: Comentário Bíblico William Barclay
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